O valor estimável da réplica.
Hoje, dia 4 de fevereiro de 2014, sofremos uma grande perda.
O Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo acordou, no meio da madrugada em
chamas. O foco e a destruição se limitaram ao Centro Cultural, lugar em que
estavam depositadas réplicas de grandes obras de arte como A Pietá e o enorme
Davi de Michelangelo entre outras não menos importantes como a Vênus de Milo e
o Mercúrio em Repouso. O Centro Cultural estava fechado à visitação pública e,
felizmente também por isso, não houve feridos.
Quando comecei a trabalhar no Liceu, em março de 2013, minha
sala ficava dentro do Centro Cultural. Ali eu passava seis horas do meu dia
encerrado corrigindo as redações produzidas semanalmente pelos alunos em
companhia de outros corretores. Muitos nos olhavam com pena de ficarmos tão
isolados, às vezes se esqueciam de fato que existíamos, mas para mim não havia
lugar melhor para se trabalhar, dado meu temperamento introvertido e ao
silêncio só experimentados em museus vazios. O trabalho, que exige muita
concentração, exauria-nos, e precisávamos fazer algumas pausas.
Era com frequência que eu visitava as réplicas. A possibilidade
de chegar tão perto da Pietá, com o filho do Deus católico em seus braços, era
estimável, esse termo de mesma fonte etimológica, mas aqui entendido como
estima, apreço. Nada me deixava mais sensível e assim, com minhas energias
novamente carregadas do que poder observar essas réplicas, até então, originais
para mim, uma vez que não as tinha visto em sua forma original. A expressão de
dor de Laocoonte marcara-me desde a visão da imagem nas aulas de Estudos
Clássicos na USP, e ali estava ela, perto, muito perto, era sem dúvida a minha
preferida. Meus problemas se tornavam automaticamente insignificantes quando eu
encarava um pai lutando contra divinas serpentes gigantes que engolia seus
filhos.
A palavra estima tornou-se, na sociedade hodierna, relacionada
ao valor monetário. Porém, o preço, ou apreço, pelas coisas nem sempre foi
pautado pelo seu valor comercial. É comum hoje que a cópia seja desvalorizada
enquanto que as obras originais sejam inestimáveis, ambos os termos usados no
sentido do valor financeiro. Mais tarde pude encontrar não apenas a Pietá
original. A experiência da Pietá foi, infelizmente, nem um pouco sublime, como
descrevera um querido professor de Literatura Brasileira sobre suas vistas à
Basílica de São Pedro. Aquele edifício colossal, a proteção e distância que o
público era submetido para observar aquela obra de arte eram tão diminutas em
relação à sensação que eu experimentava nas manhãs no Liceu, que não me mantive
ali sequer por um minuto. Todavia, alhures, me deparei com uma réplica da Mona
Lisa, feita por um ajudante de Michelangelo, pude encará-la como quem olha a
face de outrem espremido no vagão da linha azul às 18h. Foi lindo, muito mais
lindo do que La Gioconda original, cercada por seguranças, barras de metal,
vidros e uma horda de japoneses com câmeras fotográficas.
O que foi perdido hoje para muitos serão nada mais que
réplicas sem valor substancial. Eu chorei. O valor estimável que elas tinham
para mim, e acredito que para outros também, é, espiritualmente, inestimável. Essa
perda chamou-me a atenção para o que damos valor nessa vida, passamos por
lugares, pessoas e obras o tempo todo, esquecemo-nos delas, as desvalorizamos
ou sequer as notamos. Assim, recebi minha última lição vinda desses silenciosos
mestres.
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